terça-feira, 2 de novembro de 2010

Prisão e agonia

João Cândido saindo escoltado do Hospital Central do Exército
Os anistiados de novembro de 1910 foram considerados coparticipantes da segunda revolta, mesmo que não tivessem tomado parte na revolta do Batalhão Naval. No dia que estourou a segunda revolta, os oficiais, ao ouvirem os primeiros tiros da Ilha das Cobras, abandonaram seus respectivos postos, arriaram os botes e zarparam para terra. João Cândido estava no Minas Gerais e decidiu assumir o navio, levando-o para longe da linha de tiroteio. Após a rendição ao governo em 26 de novembro, o grupo formado por João Cândido, Francisco Dias Martins, Manoel Gregório, André Avelino e outros parece ter perdido a unidade de liderança frente a todos os marinheiros.

A repressão começou no dia seguinte ao levante no Batalhão Naval. Assim que pôs os pés em terra, João Cândido foi preso sob a acusação de ter movimentado o Minas Gerais. Assim como o líder do Minas Gerais, centenas de outros começavam a ser presos e a lotar a Casa de Detenção, quartéis do Exército e da polícia, assim como o presídio da Ilha das Cobras. Isso tudo já na manhã do dia 11 de dezembro. Antes de se julgar qualquer ex-amotinado, a Marinha já começava a puni-los. Centenas de marinheiros foram deportados para o Pará nos porões do paquete Satélite. A viagem, contudo, terminaria no Acre, onde foram  oferecidos para o trabalho nos seringais e na abertura da ferrovia Madeira-Mamoré. a polícia, a Marinha e o Exército aproveitaram a mesma viagem do Satélite para "limpar" a cidade, extirpando todos aqueles que representassem ameaça à ordem e à disciplina: marinheiros, soldados, presos e presas civis. Porém, antes de chegarem ao destino, alguns marinheiros foram fuzilados sob a acusação de estarem tramando uma revolta a bordo do Satélite.

Mapa antigo da Ilha das Cobras
No dia 22 de dezembro, chegavam ao presídio da Ilha das Cobras o marinheiro João Cândido e outros que passariam a noite numa das piores celas daquela instituição. Essa cela era remanescente do período colonial, estava encravada nas pedras da ilha, o que impedia a entrada de luz natural e maior circulação de ar. Uma pequena cela para 18 homens. Todos morreram sufocados por causa da inalação do pó da cal usado para desinfetar o local. Somente João Cândido e o marujo João Avelino Lira sobreviveram. João Cândido relata essa experiência:

"A prisão era pequena e as paredes estavam pichadas. A gente sentia um calor de rachar. O ar, abafado. A impressão era de que estávamos sendo cozinhados dentro de um caldeirão. Alguns, corroídos pela sede, bebiam a própria urina. Fazíamos as nossas necessidades num barril que, de tão cheio de detritos, rolou e inundou um canto da prisão. A pretexto de desinfetar o cubículo, jogaram água com bastante cal.

Havia um declive e o líquido, no fundo da masmorra, se evaporou, ficando a cal. A princípio ficamos quietos para não provocar poeira. Pensamos resistir os seis dias de solitária, com pão e água. Mas o calor, ao cair das dez horas, era sufocante. Gritamos. As nossas súplicas foram abafadas pelo rufar dos tambores. Tentamos arrebentar a grade. O esforço foi gigantesco. Nuvens de cal se desprendiam do chão e invadiam os nossos pulmões, sufocando-nos. A escuridão, tremenda. A única luz era um candeeiro a querosene. Os gemidos foram diminuindo, até que caiu o silêncio dentro daquele inferno, onde o Governo Federal, em quem confiamos cegamente, jogou dezoito brasileiros com seus direitos políticos garantidos pela Constituição e por uma lei votada pelo Congresso Nacional. Quando abriram a porta já tinha gente podre. O médico do Batalhão Naval, um homem muito querido, o Dr. Guilherme Ferreira, negou-se a fornecer os atestados de óbito como morte natural. Retiraram os cadáveres e lavaram a prisão com água limpa, e nós dois, os únicos sobreviventes, fomos metidos, novamente, na desgraçada prisão. Lá fiquei até ser internado como louco no hospício.

Um dia o carcereiro abriu a porta e disse que eu iria sair. Colocaram-me dentro de um carro. Fui acompanhando o trajeto. A princípio passei pela avenida Beira-Mar, veio Botafogo e, na Praia Vermelha, o veículo entrou num velho casarão. Era o Hospital dos Alienados, onde fui jogado como doido varrido. Depois da retirada dos cadáveres, comecei a ouvir gemidos dos meus companheiros mortos, quando não via os infelizes, em agonia, gritando desesperadamente, rolando pelo chão de barro úmido e envoltos em verdadeiras nuvens de cal. A cena dantesca jamais saiu dos meus olhos."



MOREL, Edmar. A Revolta da Chibata: subsídios para a história da sublevação na Esquadra pelo marinheiro João Cândido em 1910. 5ª edição comemorativa do centenário da Revolta da Chibata, organizada por Marco Morel. São Paulo: Paz e Terra, 2009.
NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Cidadania, cor e disciplina na Revolta dos Marinheiros de 1910. Rio de Janeiro: Mauad X : FAPERJ, 2008.

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